terça-feira, 17 de novembro de 2015

O financiamento externo público e a dívida externa

Uma ideia comum é a de que o financiamento externo da dívida pública (ou privada) aumenta o endividamento líquido do país em relação ao exterior. Intuitivamente faz sentido, mas não é verdade.

Vou tentar mostrar porquê com um exemplo que espero que seja simples e esclarecedor. A melhor forma de analisar estas questões passa por construir as balance sheets de todos os envolvidos e analisar o que acontece. Imaginemos a seguinte situação inicial:



Banco P representa um banco qualquer português, banco A um banco qualquer alemão. As balance sheets são apenas representativas, os valores são completamente inventados e estão apenas presentes algumas entradas. O importante é ver o efeito da venda de um bilhete do tesouro por parte do governo a um investidor estrangeiro:

A vermelho estão as alterações que a venda de um bilhete do tesouro no valor de 100€ provoca. O governo aumenta simultâneamente os seus depósitos e a sua dívida. O investidor alemão vê o seu depósito bancário reduzido no mesmo valor do título que adquiriu. A transferência de um passivo (depósito) de um banco para o outro tem que ser saldada entre os bancos e o modo como é feita é através da transferência de reservas, mantendo assim o valor dos bancos inalterado. O banco P com as reservas que adquiriu pode reduzir o seu endividamento no mercado interbancário, chegando-se assim à seguinte situação:


No que diz respeito à nossa situação relativamente ao exterior houve um aumento de dívida pública externa no valor de 100€ e uma redução de dívida externa do sector financeiro de igual valor. A operação foi neutra relativamente ao nosso endividamento externo.

Da mesma forma, se o governo eliminasse a sua dívida externa pagando o valor devido na maturidade ao detentor dos bilhetes do tesouro, isto não reduziria o nosso endividamento externo. Pelo contrário, se houvesse lugar a pagamento de juros o nosso endividamento externo aumentaria!!

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Há ou não há dinheiro?

Para respondermos a esta pergunta é necessário compreender algumas coisas antes. O que é dinheiro? O que conta como dinheiro? Como é criado?

Em 2014 o Banco de Inglaterra publicou no seu boletim trimestral dois artigos (Money in the modern economy: an introduction e Money creation in the modern economy) que explicam de forma clara o essencial destas questões. O que se segue são respostas simples às questões anteriores baseadas nestes dois artigos.

O que é dinheiro?

De forma simples, dinheiro é uma IOU em que toda a gente confia. É um activo financeiro e sendo um activo financeiro é também um passivo financeiro de alguém.
Uma IOU (tem origem na expressão I owe you) é um reconhecimento de dívida por parte de quem a emite, ou seja uma promessa de pagamento futuro. Só são aceites como dinheiro as IOUs emitidas por certas entidades em que todos confiam.

O que conta como dinheiro?

Actualmente existem três tipos de IOUs que são consideradas dinheiro. Numerário (notas e moedas), depósitos bancários e reservas do banco central.

As notas e moedas são IOUs emitida pelo banco central, ou seja um passivo financeiro do banco central e um activo de quem as detém. No tempo do padrão ouro o banco central (dos países aderentes a este sistema) assegurava a conversão das notas e moedas em ouro. Actualmente, na maioria dos casos, a moeda é fiduciária, ou seja, não é convertível em qualquer outro activo.

Depósitos bancários constituem a esmagadora maioria do dinheiro que existe na economia (97% em Inglaterra). Estes são IOUs emitidas pelos bancos (por bancos entenda-se todos os bancos excepto bancos centrais), ou seja são um passivo financeiro dos bancos e um activo dos seus clientes.

Reservas do banco central são IOUs emitidas pelo banco central e detidas pelos bancos. São um passivo financeiro do banco central e um activo dos bancos. Servem essencialmente para os bancos efectuarem pagamentos entre si, isto é, quando um banco quer fazer um pagamento a outro banco fá-lo com as reservas que tem no banco central. Assim como nós temos uma conta no banco através da qual podemos fazer e receber pagamentos, os bancos têm uma conta no banco central para o mesmo efeito.

A figura seguinte mostra as balance sheets simplificadas do banco central, dos bancos comerciais e dos consumidores (famílias, empresas, etc) e permite ter uma ideia do que estamos a falar.


Como é criado?


As notas e moedas são impressas pelos bancos centrais e fornecidas ao público e aos bancos conforme as suas necessidades. Citando o Banco de Portugal:

“O Banco de Portugal disponibiliza ao público, através de operações de troca, a quantidade desejada de notas e moeda metálica corrente, adequando assim a oferta à procura de numerário e assegurando uma eficiente circulação e redução do risco de escassez de algumas denominações de notas e moeda metálica de euro no território nacional.”

Quanto às reservas do banco central, sem entrar em grande detalhe, estas são criadas (e destruídas) através de operações financeiras entre o banco central e os restantes bancos que podem acontecer tanto por iniciativa do banco central como por iniciativa dos bancos.

O modo como são criados depósitos bancários é uma questão muito debatida ao longo dos tempos à qual está associada a discussão de como a quantidade de dinheiro é determinada assim como do papel dos bancos na economia.

Basicamente existem duas visões, a exógena e a endógena. A primeira diz que o Banco Central controla a quantidade de dinheiro existente na economia e que portanto os bancos são meros intermediários entre aqueles que poupam e aqueles que se desejam endividar. Isto significa que os bancos antes de emprestarem dinheiro a alguém têm que antes obter os fundos para o fazer, ou seja necessitam de depósitos antes de fazerem empréstimos.

A segunda afirma que a quantidade de dinheiro existente na Economia não é determinada pelo Banco Central, mas sim de forma endógena, pela acção dos restantes agentes económicos (bancos, empresas, famílias). Segundo esta visão os bancos são criadores de dinheiro,  não precisam de obter depósitos antes de emprestarem dinheiro a alguém, o que acontece é que os bancos criam os depósitos ao fazerem o empréstimo.

Um exemplo interessante do confronto entre estas duas visões foi o debate entre Paul Krugman (visão exógena) e Steve Keen (visão endógena) em 2012.

Então o que nos disse quanto a isto o Banco de Inglaterra? Que a visão endógena é a correcta, os bancos quando concedem empréstimos criam os depósitos necessários para os financiar. A figura seguinte permite ver o que acontece quando um banco concede um empréstimo para a compra de uma casa em que o vendedor da casa tem conta noutro banco. 


Inicialmente o banco expande a sua balance sheet, criando um activo (passivo do cliente), o empréstimo e um passivo (activo do cliente), o depósito bancário que é depois transferido para a conta do vendedor da casa. Uma transferência bancária não pode consistir apenas na transferência do depósito, pois isto significaria uma redução do passivo do banco de origem e de aumento do passivo do banco de destino da transferência alterando assim a posição líquida de cada um dos bancos. O que acontece é que a transferência do passivo (depósito) é acompanhada pela transferência de um activo, as reservas bancárias. Portanto, voltando ao caso da figura, a transferência de reservas deixa o banco que fez o empréstimo com um nível de reservas abaixo dos requisitos mínimos enquanto que o outro banco fica com um excesso de reservas. Em situações normais, as reservas em excesso são emprestadas ao banco em falta, sendo que em último caso o banco pode sempre recorrer ao banco central para que lhe empreste as reservas necessárias. 

Existem obviamente limitações à criação de dinheiro, mas estas prendem-se com a percepção de risco que cada banco tem, dos custos associados à concessão de empréstimos, da regulação existente mas nunca pela ausência de depósitos. O banco central tem também algum controle sobre este processo, através da determinação da taxa de juro overnight, tornando mais cara e difícil ou mais barata e fácil a posterior obtenção de fundos por parte dos bancos. 

Num artigo muito interessante, Richard Werner faz o teste do algodão, dirige-se a um banco, pede um empréstimo e tira as suas conclusões.

Mas há ou não há dinheiro?

O que tudo isto nos diz é que dinheiro não é uma coisa finita, escassa como é dado a entender quando se diz que não há dinheiro. Actualmente são meros números num computador... Veja-se o caso ilustrativo de um homem que viu a sua conta ser creditada com 6.2 milhões de dólares em vez de 62 mil depois de um funcionário bancário se ter esquecido do separador decimal.

Como resposta à crise financeira os principais bancos centrais compraram os mais variados activos financeiros. A figura seguinte mostra a dimensão do que aconteceu, sendo possível também ver a timidez da resposta do BCE quando comparada com o FED ou o banco de Inglaterra.


Onde arranjaram o dinheiro para o fazer? Criaram-no na hora usando um computador, como explica Ben Bernanke o Presidente do FED na altura. 

Da mesma forma se poderia criar dinheiro para financiar programas de investimento de estímulo à economia, a nível europeu ou a nível estatal, sem que as taxas de juro disparassem. As razões para que isto não seja feito são políticas e não por falta de dinheiro como se quer dar a entender, apresentando o rumo seguido como uma inevitabilidade. Podem dizer que temos que cortar salários e pensões, despedir médicos e professores porque essa é a actual opção política da Europa, assente numa determinada visão da Economia, mas não podem dizer que é por falta de dinheiro. Citando Keynes: "Anything we can do, we can afford"

sábado, 31 de outubro de 2015

A conversa do costume

André Azevedo Alves vem-nos dizer que não há dinheiro para mais socialismo, esquecendo-se de dizer que isto se deve exclusivamente a uma decisão política, a nível europeu. Como o insuspeito Gonçalo Almeida Ribeiro disse, e muito bem, no prós e contras de 5 de Outubro ao minuto 44:

“Eu revejo-me em várias das opções consagradas no tratado orçamental mas rejeito inteiramente a legitimidade do tratado orçamental. E porquê? Pela seguinte razão. Quando se deu a crise e houve um consenso relativamente amplo no sentido de que não podia haver uma cisão entre a política monetária, que estava a nível europeu, e a política orçamental, que estava a nível dos Estados, era preciso europeizar alguns aspectos da política orçamental. Em vez de se transferirem essas competências para o processo político europeu onde estão representados os Estados no concelho e os cidadãos no Parlamento e esses órgãos decidiriam de acordo com os resultados das eleições europeias e do processo político interno dos Estados, o que aconteceu foi que uma determinada concepção da política macroeconómica e financeira – que é uma concepção claramente à direita – foi gravada na pedra pelo tratado orçamental. E ao fazê-lo colocou os partidos de esquerda moderada numa situação muito complicada na Europa, porque eles querem o Euro mas rejeitam, por outro lado, como não podem deixar de rejeitar, alguns aspectos do Euro.”

De resto, o misturar de alhos com bugalhos (leia-se com e sem euro) que André Azevedo Alves faz, assim como a diabolização habitual dos défices públicos demonstra ignorância ou desonestidade, mas isso fica para outro post…

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Linhas fracturantes

No blog Ladrões de Bicicletas surgiu a seguinte imagem acompanhada dum interessante texto do Nuno Serra sobre a linha que fractura o espectro parlamentar e a sua recente evolução.

Concordando com o que foi dito gostaria só de reforçar a argumentação, tentando mostrar que apesar da defesa da saída do euro ou da renegociação da divida tanto o Bloco como o PCP estão muito mais próximos do PS do que o PS da direita.

Em primeiro lugar, a renegociação da dívida é uma questão sobrevalorizada, o PS também a defende apesar de com menos urgência e de forma concertada e existem outras soluções que a tornariam desnecessária. Pessoalmente, num cenário ideal, até sou contra a renegociação, mas isso é  tema para outro dia.

A discrepância relativamente à saída do euro creio ser menor do que à partida possa parecer. Toda a esquerda concorda que a actual arquitectura do euro, com o tratado orçamental, o pacto de estabilidade e crescimento e outras semelhantes aberrações é insustentável, economicamente irracional e que é necessário alterar as suas regras. A diferença está na fé que cada um dos partidos deposita na possibilidade da mudança dessas regras. Se o PS estivesse seguro de que seria impossível alterar significativamente a lógica da zona euro nos próximos 10 anos, penso que defenderia a saída do euro. Se o admitiria abertamente é outra questão.
Por outro lado a direita concorda de modo geral com as actuais políticas europeias assim como com a sua visão económica e não admite pôr em causa o projecto europeu. E essa é uma diferença muito mais profunda relativamente ao PS do que a existente à esquerda, porque é uma diferença de fundo, de visão política e económica.

Concluindo, claro que existem algumas diferenças entre o PS e os partidos mais à esquerda mas estas podem e devem ser passadas para segundo plano quando existe uma questão muito mais fracturante e urgente em causa.
Este esbater de diferenças em nome dum objectivo comum e urgente faz-me lembrar as viagens feitas no tempo da escravatura pelos navios que tinham como objectivo transportar os escravos dum lado ao outro do Atlântico descritas em The Slave Ship. Até à chegada a África, a tripulação era abusada e humilhada de forma cruel pelos seus superiores. Depois de recolhidos os escravos e perante o perigo eminente de um motim, tudo isso era quase esquecido, criavam-se laços e surgia um sentido de identidade comum, impossível ate então. Do lado dos escravos passava-se algo semelhante, homens de tribos diferentes, muitas vezes rivais, uniam-se naquelas circunstâncias para fazer frente a uma ameaça muito mais séria e urgente.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Olá mundo...


Isto vai ser sobre economia, política e qualquer assunto sobre o qual me apeteça mandar umas bocas. A perspectiva será pós-keynesiana, de esquerda e benfiquista. Vamos lá ver quanto isto dura...